sábado, 23 de fevereiro de 2013

Humana demais

Foto: Armando Farrera


“Eu insisto em ver a margem quando vês o coração”.
(Padre Fábio de Melo¹)

A margem faz com que julguemos na superficialidade de nossos pseudoencontros. Conhecemos e não gostamos ou conhecemos e já nos apaixonamos perdidamente como se não houvesse vida sem a pessoa que ontem chegou. Não importa se já vivemos 30, 40 ou 50 anos sem esse encontro, a partir dele tudo se transformou. Ilusão.

Não quero naturalizar ou simplificar a dor do amor não correspondido. Vivi e conheci histórias dolorosas de entregas involuntárias por um pouco de ternura... Involuntárias porque não se decide quem amar quando se trata de Eros. O sentimento vem de assalto e desmantela a razão. Não há explicações possíveis, apenas emoção.

Emoção sentida ou imaginada, leituras corretas ou erradas, mas leituras. Lê-se o semblante do outro e as suas reações o tempo todo, interpreta-se da forma como a emoção a explica – justo ela que não é perita em tal arte. E a dor se amplia e a razão se apequena. Não faço aqui apologia da razão sem emoção, da alma sem o corpo, do dever sem o prazer, esses maniqueísmos são prejudiciais ao equilíbrio. Faço apenas uma reflexão modesta com a intenção de dar sentido ao caminhar de mãos dadas de Drummond, de uma forma boa e bela, portanto amorosa. E ainda de emprestar o lápis de Madre Teresa e se encantar com esse Nazareno que surpreendeu e que surpreende por sua imprevisibilidade no amor. Destrói correntes de convenções desnecessárias e se faz comunhão na liberdade.

O medo de não ser amado é recorrente em um mundo pouco preocupado com os sentimentos alheios. Não há tempo para gastar com pessoas complicadas... Quem quer ensinar o pescador de peixe a pescar homens? Quem quer olhar para a pecadora e mudar a sua vida? Quem quer se lambuzar de histórias intermináveis de uma interminável espera de um encontro imaginário? Não há tempo nem disposição. São as margens que mais aparecem enquanto o coração se esvazia.

Meu amigo, há tanta gente cheia de beleza que se perde à beira do caminho, a espera desse suposto amor. Enfeiam-se diante da negativa dos seus desejos, diminuem-se diante da morte das suas aspirações. Ora, não se trata de aspiração essa obsessão, trata-se de feridas dolorosas, remexidas, de uma corrosão da autoestima. Deixam de lado o viço da juventude ou de qualquer idade para esperar. E a travessia fica sem sabor.

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia e se não ousarmos fazê-la teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos. É o que propõe Fernando Pessoa, que também sofreu de amor e talvez nem tenha conseguido atravessar a dor.

É disso que falo, amigo. Aos amantes não amados não um conselho, mas um intento amoroso: abandonar as roupas usadas e ousar novos caminhos. É um desperdício deixar o burburinho interminável da teimosia roubar a preciosidade da solidão e do silêncio. Não há por que ter medo. É bom ficar a sós e reconstruir com pedras e enfeitar com flores os sobrados que se desmancharam por aí. Talvez não fique igual, talvez seja melhor que nasça diferente... As comparações podem ser corrosivas do metal nobre da escultura em modelagem ainda frágil. Não há pessoas iguais, nem sentimentos iguais. Há novas tentativas, novas formas de descobrir e dar significado a um rosto que era só multidão.

Obrigada amigo, por partilhar seu tempo com minhas divagações. Com você, a travessia fica mais bonita.
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¹ A frase pertence a música “Humano Demais”, interpretada pelo Padre Fábio de Melo. Porém, ressalto que é uma composição de Vital Lima e Marco Aurélio. Para ouvir, basta clicar AQUI.

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