Nariz,
consciência sem remorsos, tu me vales muito na vida... Já meditaste alguma vez
no destino do nariz, amado leitor? A explicação do doutor Pangloss¹ é que o
nariz foi criado para uso dos óculos, - e tal explicação, confesso que, até
certo ponto, me pareceu definitiva; mas me ocorreu um dia, em que estava
pensando sobre esse e outros pontos obscuros de filosofia, a única, verdadeira
e definitiva explicação.
Com efeito,
bastou-me lembrar do costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas
horas olhando para a ponta do nariz, com o único fim de ver a luz celeste.
Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas
externas, embeleza-se no invisível, apreende o impalpável, desvincula-se da
terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o
fenômeno mais sublime do espírito e a faculdade de obtê-la não pertence ao
faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o
seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo
efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio
das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o
gênero humano não chegaria a durar dois séculos; extinguia-se com as primeiras
tribos.
Faquir |
Um momento. Ouço
daqui uma objeção do leitor. Diz: - Mas como pode ser assim, se nunca jamais
foi visto os homens contemplando o seu próprio nariz?
Respondo-te que
nunca entraste no cérebro de um vendedor de bolsas. Pense: um vendedor de
bolsas passa em frente a uma loja de bolsas; é a loja de um rival que abriu há
dois anos; tinha duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e depois oito.
Nas vidraças ostentam-se as bolsas do rival; pela porta entram os fregueses do
rival; o vendedor de bolsas compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e
tem só duas portas, e aquelas bolsas com as suas, menos buscadas, ainda que de
igual preço. Atormenta-se, naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os
olhos para baixo ou para frente, se perguntando o porquê das causas da
prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele vendedor é muito
melhor vendedor que o outro vendedor... Nesse instante é que os olhos se fixam
na ponta do nariz.
A conclusão,
portanto, é que há duas forças capitais: o amor que multiplica a espécie, e o
nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.
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¹
Personagem extremamente otimista de Cândido, novela de Voltaire.
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