sábado, 27 de outubro de 2012

A ponta do nariz



Nariz, consciência sem remorsos, tu me vales muito na vida... Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do doutor Pangloss¹ é que o nariz foi criado para uso dos óculos, - e tal explicação, confesso que, até certo ponto, me pareceu definitiva; mas me ocorreu um dia, em que estava pensando sobre esse e outros pontos obscuros de filosofia, a única, verdadeira e definitiva explicação.

Com efeito, bastou-me lembrar do costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas olhando para a ponta do nariz, com o único fim de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível, apreende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais sublime do espírito e a faculdade de obtê-la não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos; extinguia-se com as primeiras tribos.

Faquir  

Um momento. Ouço daqui uma objeção do leitor. Diz: - Mas como pode ser assim, se nunca jamais foi visto os homens contemplando o seu próprio nariz?

Respondo-te que nunca entraste no cérebro de um vendedor de bolsas. Pense: um vendedor de bolsas passa em frente a uma loja de bolsas; é a loja de um rival que abriu há dois anos; tinha duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e depois oito. Nas vidraças ostentam-se as bolsas do rival; pela porta entram os fregueses do rival; o vendedor de bolsas compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aquelas bolsas com as suas, menos buscadas, ainda que de igual preço. Atormenta-se, naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para frente, se perguntando o porquê das causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele vendedor é muito melhor vendedor que o outro vendedor... Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.

A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.
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¹ Personagem extremamente otimista de Cândido, novela de Voltaire.

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