domingo, 19 de fevereiro de 2012

Vermelho

A que atribuir a frequência da cor vermelha no trajo das mulheres do interior, principalmente no Nordeste e na Amazônia?

Trata-se de um costume místico, de proteção ou de profilaxia do indivíduo contra espíritos ou influências más. Mas a influência maior parece ter sido a do índio, para quem a pintura do corpo de encarnado (urucu) nunca foi a expressão de simples gosto de bizarria que pareceu aos primeiros cronistas. Sem desprezarmos o fato de que pintando-se, ou antes, untando-se do oleoso urucu, parece que se protegiam os selvagens durante a caça ou a pesca, da ação do sol sobre a pele, das picadas de mosquitos e de outros insetos e das oscilações de temperatura, encontramos a pintura do corpo desempenhando entre os indígenas do Brasil função puramente mística, de profilaxia contra os espíritos maus, e, em número menor de casos, erótica, de atração ou exibição sexual. E como profilaxia contra os espíritos maus era o encarnado cor poderosíssima.

Aos portugueses parece que a mística do vermelho se teria comunicado através dos mouros e dos negros africanos; e tão intensamente que em Portugal o vermelho domina como em nenhum outro país da Europa, não só o trajo das mulheres do povo como profilaxia contra malícias espirituais, várias outras expressões da vida popular e da arte doméstica. Vermelho deve ser o telhado das casas para proteger quem mora debaixo deles:

As telhas do teu telhado
São vermelhas, têm virtude.
Passei por elas doente,
Logo me deram saúde.

É a cor que se pintam os barcos de pesca, os quadros populares dos milagres e das alminhas, os arreios dos muares, as esteiras; de que se debruam vários produtos da indústria portuguesa; a que se usa, por suas virtudes miríficas, nas fitas em torno do pescoço dos animais. Embora já um tanto perdida entre o povo a noção profilática do vermelho, é evidente que a origem dessa predileção prende-se a motivos místicos. E é ainda o encarnado entre os portugueses a cor do amor, do desejo de casamento.

Nos africanos, encontra-se a mística do vermelho associada às principais cerimônias da vida, ao que parece com o mesmo caráter profilático que entre os ameríndios.

Nos vários Xangôs e seitas africanas que temos no Recife e seus arredores, é o vermelho a cor que prevalece, notando-se entre os devotos homens de camisa encarnada. Nos turbantes, saias e xales das mulheres de Xangô domina o vermelho vivo.

Nos nossos maracatus e reisados, o rei do Congo ou a rainha aparece sempre de manto vermelho; e encarnados são sempre os estandartes, com cabeças de animais ou emblemas de ofícios pintados ou bordados a ouro, dos clubes populares de carnaval.

Mas o que se pode concluir é ser a preferência pelo encarnado no brasileiro um traço de origem principalmente ameríndia. O selvagem considera os grandes inimigos do corpo não os insetos e bichos, mas os espíritos maus. Estes o homem primitivo imagina sempre à espreita de oportunidade para lhe penetrarem no corpo: pela boca, pelas ventas, pelos olhos, pelos ouvidos, pelo cabelo. Importa, pois, que todas essas partes consideradas as mais críticas e vulneráveis do corpo, sejam particularmente resguardadas das influências malignas. Daí o uso de botoques, penas e fusos atravessados no nariz ou nos lábios; de pedras, ossos e dentes às vezes pintados de preto. Tudo para esconjurar espíritos maus, afastá-los das partes vulneráveis do homem.

Os índios costumam besuntar o cabelo de encarnado para poderem tomar parte em danças e cerimônias fúnebres – ocasiões em que o índio se sente particularmente exposto à ação maléfica do espírito do morto e à de outros espíritos, todos maus, que os selvagens julgam soltar-se ou assanhar-se nesses momentos.

Qual fosse o motivo fundamental da preferência do selvagem da América pelo vermelho não é fácil de precisar: talvez o fato de ser a cor do sangue... Seria um substituto do vermelho do sangue.

"Vermelho, vermelhaço,
vermelhusco, vermelhante, vermelhão (...)
Vermelhou o curral,
a ideologia do folclore avermelhou!
Vermelhou a paixão,
o fogo de artifício da vitória vermelhou!"

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