Imagino a cena. Um paciente do doutor Adolfo Rocha, conhecido otorrino, dito paciente um pacato cidadão, com uns certos ares intelectuais, recebe sua receita das mãos do médico e diz, antes da despedida: "doutor, gosto muito dos seus livros". Pra quê?
O doutor, que até ali fora de uma dedicação extrema ao cuidar da ziquizira do cidadão, treme nas bases. Quer rasgar a receita, talvez para não acrescentar aquelas letras curtas e grossas, a sulfamida duas vezes ao dia, aos poemas lembrados em má hora pelo paciente. Como bom agnóstico, e agora descrente também do próprio diagnóstico, o ilustre médico não perdoa: o mínimo de que acusa seu paciente é de impertinente. O pobre paroquiano põe a receita no bolso e o rabo entre as pernas e pica a mula. Então, o doutor Adolfo Rocha chama a secretária, “a esquelética e desdentada dona Glória, viúva com quatro filhos pequenos, vestida sempre de preto”, e diz a ela que hoje não atende mais ninguém, por favor despache os que estão na sala de espera, aguentem os coitados seus inchaços, que dor maior agora é a dele.
Como um destemido Clarck Kent das letras, o doutor Adolfo Rocha arranca o avental branco de médico e ali mesmo no bloco de receitas começa a rabiscar seu desabafo. Que. “Num pudor insofrido e quase hostil, por força das mais inesperadas agressões, queria ser respeitado nas razões profundas que me haviam levado a discriminar na própria identificação o acontecimento íntimo de ser poeta do ato público de ser médico.” Que. “O nome exposto na tabuleta correspondia ao cidadão comprometido na honra do sangue, no grau das habilitações, nos deveres da urbanidade; o outro indeterminava o campo das minhas visualidades, situava-me para além de todas as heranças e de todos os estatutos.” No meio do mundo, com a capacidade de voar sobre mares e terras, vivia o poeta.
Devo fazer um reparo antes de terminar a história. A irritação não tinha nada a ver, como sugeri, com a possibilidade do paciente tomar as letras da receita que o doutor manda aviar como parte de sua obra poética.
Em outro episódio, ele não consegue escrever um comunicado ao responsável por um rapaz que acaba de examinar. Tenta três, quatro vezes, rasga seguidas folhas de papel e é o rapaz quem o salva sugerindo: "e se telefonasse?" Quando o doutor encontra dias depois com o tal responsável pelo rapaz, este põe-se a rir. Mas, porque ele ri? O homem conta que seu protegido, depois de voltar do consultório, não conteve um desabafo: “o homem será um bom médico, agora bom escritor é que não é, fez mais de quantas tentativas para lhe dizer que eu tinha uma faringite e não foi capaz...”
Os médicos escritores sempre me chamaram a atenção, talvez por ter a esperança, nas minhas ziquiziras, de ser atendida por um também poeta, por ter a remota esperança de estar de alguma forma diante de um doutor Anton Tchekhov, de um doutor Mikhail Bulgakov, o que me faria confiar mais na minha cura, muito menos pelas letras tortas (e ilegíveis) das receitas do que pelo levantamento do espírito que as outras letras do doutor podiam me proporcionar.
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